domingo, março 28, 2021

A Porta que Range

Era uma porta enferrujada. E ela entrou.

Porta de madeira maciça com apontamentos em ferro a representar flores e cornucópias e um irritante gemer de cada vez que se abre ou fecha.
Bateram suavemente, três toques ritmados, fui abrir, o ranger da porta acompanhou a abertura da mesma. Abri de forma suave, era ela, com aquele ar altivo de sempre, nariz mais empinado, talvez. Perguntei-lhe o que fazia ali, o que queria desta vez, dinheiro?! Provocação, pura e simples?! Baixou a cabeça, pela primeira vez vi-lhe cabelos brancos junto à raiz, fiquei mais atento e reparei no cabelo maltratado. Ainda cabisbaixa, disse num tom triste: “Fiquei sem casa. Não tenho onde ficar, daí estar aqui. Não sabes o que custa, como o meu orgulho está ferido. Afinal fomos casados doze anos, não me portei bem contigo bem sei, mas não tinha a quem recorrer.”

- Entra. Disse, sem saber muito bem o que fazer. Acabei por lhe perguntar: “Afinal como chegaste a este ponto? Porque foste despejada?

Já sentada no sofá, o velho sofá que tão bem conhecia e onde em tempos idos me beijara até não haver amanhã, disse: “Perdi o emprego à 10 meses, com a crise, a pandemia, a lay-off e para ajudar a empresa foi deslocada para a Eslováquia, tenho vivido com o subsidio de desemprego que entretanto acabou. Deixas-me ficar, por favor?! Não te vou dizer que é por dois ou três meses, não sei o tempo que vou precisar. Mas, deixas não deixas?!”

Saiu-me um sorriso, pela primeira vez senti um brilho nos seus olhos, levantei-me, pedi para ela se levantar também, ficámos defronte um ao outro.

- Podes ficar, sim! Dá-me um abraço.

Afinal, a minha porta de entrada range, não se de raiva ou falta de óleo, mas o meu coração pulsa de amor.

 

2 comentários:

Graça Pires disse...

Boa narrativa que aqui encontro.
Obrigada pelas palavras deixadas no meu "Ortografia". Passarei aqui outras vezes.
Uma boa semana com muita saúde.
Um beijo.

Anónimo disse...

Prazeroso! Gosto de portas que rangem... Contam histórias... Guardam memórias de outros tempos... Mas portas que pulsam de amor é outra bonita metáfora a reter! Parabéns!