A manhã acordou fria. Aqui e ali
um fiozinho de gelo relembra-nos que o Inverno está à porta.
Estou quase pronto a abalar,
calço as minhas botas ensebadas e a samarra já coçada pelo tempo. Os meus
sessenta anos já me trazem mazelas aos joelhos, levo um cajado para me apoiar e
afastar os cães vadios, se for caso disso.
Vou a Lisboa, dizem que vem uma
senhora importante da Alemanha, para nos ajudar e o nosso governo quer muita
gente a apoiá-la. O Sr. Presidente dos Ministros, Prof. Doutor Relvas, fez um
comunicado no facemedia, ou lá o que é. Eu sei porque a Mariazinha, filha do
Sr. Dr. Eduardinho, que vive na casa grande disse à minha Lurdes.
Meto-me ao caminho, o sol ainda
não deu conta de si. Os primeiros km’s são penosos, mas, como dizem que é por
uma boa causa, valerá a pena o sacrifício. Recordo o Carlos Ventura, que agora
está preso, dizer uma vez à lareira do café do largo, que esta pobreza imensa
que agora vivemos se devia a estes senhores dos Países grandes da Europa
central, e mais disse, que estes senhores cobraram tantos juros que não tivemos
como pagar e também disse que estavam ao serviço dos banqueiros e só queriam
enriquecer à conta do nosso dinheiro, até ficarmos todos na miséria. Gosto do
Carlos, é bom rapaz, mas tem assim umas ideias esquisitas, não deve ser por
acaso que foi preso. Mas, caramba! Os banqueiros?! Então
se não forem os ricos a ajudarem, quem nos acode?! É como o Dr. Eduardinho, lá
da casa grande, dá trabalho à minha Lurdes, chega lá ainda de noite e regressa
já noite é, mas sempre come um caldinho e às vezes um naco de carne com couves
e no fim do dia ainda recebe um euro, não é muito bem sei, mas como também não
tem despesas…
São 11 horas, o sol já brilha mas
o frio ainda me trespassa os ossos, na estrada é raro passar um carro, depois
da terrível crise petrolífera de 2018 onde o preço do gasóleo chegou aos
7,26€/l e a gasolina a 9,15€/l, com os ordenados já em baixa, fui tudo a
encostar os carros, como também eu fiz. Passei o Sardoal, vou a caminho de
Abrantes, ao longe já vejo o casario de uma aldeia, num pedaço de chão, um
homem pouco mais velho do que eu, distrai-se com meia dúzia de ovelhas e toca
numa gaita-de-beiços. Paro a escutar a moda, a melodia parece-me familiar, mas
depois das pancadas que a polícia me deu na cabeça em 2013, a minha memória
nunca mais foi a mesma. O homem, pára de tocar com um sorriso acena-me. Subi o
carreiro até chegar onde estava.
- Viva, viajante. Chamo-me Zé. E
que tal uma pinga, mais um naco de pão e presunto?!
- Agradeço. Chamo-me Manel. Aceito
desde que partilhemos o bocadinho de broa e chouriço de sangue que trago no meu
farnel. Desculpe, parei a ouvi-lo tocar. E também já estou cansado de tanto
andar.
Disse ao que ia. Zé ouviu-me com
toda a atenção e respeito.
No fim lá disse:
- Caro Manel, acha que vale a
pena a canseira. Não se lembra como éramos na primeira década de 2000?! Estes
homens não valem nada, deram cabo da vida do nosso povo, toda a gente emigrou.
Os nossos antepassados lutaram tanto para libertar este país, depois, não sei
se se lembra veio a troika e tudo levou. Este Dr. Prof. Relvas é uma marioneta
nas mãos desta velha alemã e da banca. Liberdade de expressão?! Já era! Eu cá
não tenho medo! Além disso as minhas ovelhas também nada percebem de politica.
Ouça lá, já me contou vem de longe, você é que sabe, mas e que tal ficar cá
pela aldeia e amanhã vai nas calmas para sua casa?!
Fiquei mesmo frouxo da cabeça com
as porradas que levei da polícia, mas o Zé avivou-me bem a memória. Ao que
repliquei:
-Não! Não vou a essa manifestação
de agrado ao governo. Agora, agora bem me lembro, da miséria que meus pais e
avós passaram (e agora nós), bem me lembro da festa dos cravos encarnados numa madrugada
de Abril, da liberdade e prosperidade prometida por valentes militares ao povo
do meu País. Bem me lembro das campanhas de alfabetização, da escola para
todos, do serviço nacional de saúde, de uma segurança social sustentável, da
igualdade de género, da conquista do direito ao trabalho e à habitação, da
liberdade de dizer. Amigo Zé se me dá guarida fico até amanhã.
- Oh homem! Vamos já aldeia acima
dar a boa nova.
E pegando numa viola que estava
guardada num barracão, os acordes de “Os Vampiros” de Zeca Afonso entoam pela
estrada estreita, fazemos coro e lá vamos cantando: “Eles comem tudo, eles comem
tudo, eles comem tudo e não deixam nada”.
4 comentários:
Fantástico. Não a realidade que envolve as personagens(tempos tenebrosos se aproximam), mas sim, a fraternidade entre os homens de bem, os não gananciosos, que persiste acima de todas as dificuldades e mal-feitorias que lhes são impostas pelos biltres da alta finança (usando os seus políticos caninos), pelos "senhores doutores". Sempre haverá gente assim no meio do lodaçal, que consegue partilhar o pouco que lhes não roubam.
...então procurando aconchego na aldeia e ouvindo o gemer de uma criança deparei-me com a porta entreaberta da casa da avó Maria, viúva aos 38 anos com sete filhos cujo marido fora despedido por estar doente, diziam-no tuberculoso por ser pobre...a única sardinha , serralhenta, seria dividida pelos sete filhos, o lamber dos dedos seria a sua parte, um luxo, aos olhos das "pessoas de bem" de então...
Não se pode deixar este conto por aqui, neste "cantito", como o meu amigo se auto-designa, modéstia a sua.
Vou partilhá-lo no meu blogue e no Facebook ou facemédia ou lá o que é isso.
Caramba, até pensei, por momentos, que já estávamos em 2018!
Mas para lá caminhamos, ai caminhamos caminhamos!
Um abraço, amigo Manuel Neves
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