segunda-feira, novembro 12, 2012

Pesadelo, história de um e uma mulher alemã


A manhã acordou fria. Aqui e ali um fiozinho de gelo relembra-nos que o Inverno está à porta.
Estou quase pronto a abalar, calço as minhas botas ensebadas e a samarra já coçada pelo tempo. Os meus sessenta anos já me trazem mazelas aos joelhos, levo um cajado para me apoiar e afastar os cães vadios, se for caso disso.
Vou a Lisboa, dizem que vem uma senhora importante da Alemanha, para nos ajudar e o nosso governo quer muita gente a apoiá-la. O Sr. Presidente dos Ministros, Prof. Doutor Relvas, fez um comunicado no facemedia, ou lá o que é. Eu sei porque a Mariazinha, filha do Sr. Dr. Eduardinho, que vive na casa grande disse à minha Lurdes.
Meto-me ao caminho, o sol ainda não deu conta de si. Os primeiros km’s são penosos, mas, como dizem que é por uma boa causa, valerá a pena o sacrifício. Recordo o Carlos Ventura, que agora está preso, dizer uma vez à lareira do café do largo, que esta pobreza imensa que agora vivemos se devia a estes senhores dos Países grandes da Europa central, e mais disse, que estes senhores cobraram tantos juros que não tivemos como pagar e também disse que estavam ao serviço dos banqueiros e só queriam enriquecer à conta do nosso dinheiro, até ficarmos todos na miséria. Gosto do Carlos, é bom rapaz, mas tem assim umas ideias esquisitas, não deve ser por acaso que foi preso. Mas, caramba! Os banqueiros?! Então se não forem os ricos a ajudarem, quem nos acode?! É como o Dr. Eduardinho, lá da casa grande, dá trabalho à minha Lurdes, chega lá ainda de noite e regressa já noite é, mas sempre come um caldinho e às vezes um naco de carne com couves e no fim do dia ainda recebe um euro, não é muito bem sei, mas como também não tem despesas…
São 11 horas, o sol já brilha mas o frio ainda me trespassa os ossos, na estrada é raro passar um carro, depois da terrível crise petrolífera de 2018 onde o preço do gasóleo chegou aos 7,26€/l e a gasolina a 9,15€/l, com os ordenados já em baixa, fui tudo a encostar os carros, como também eu fiz. Passei o Sardoal, vou a caminho de Abrantes, ao longe já vejo o casario de uma aldeia, num pedaço de chão, um homem pouco mais velho do que eu, distrai-se com meia dúzia de ovelhas e toca numa gaita-de-beiços. Paro a escutar a moda, a melodia parece-me familiar, mas depois das pancadas que a polícia me deu na cabeça em 2013, a minha memória nunca mais foi a mesma. O homem, pára de tocar com um sorriso acena-me. Subi o carreiro até chegar onde estava.
- Viva, viajante. Chamo-me Zé. E que tal uma pinga, mais um naco de pão e presunto?!
- Agradeço. Chamo-me Manel. Aceito desde que partilhemos o bocadinho de broa e chouriço de sangue que trago no meu farnel. Desculpe, parei a ouvi-lo tocar. E também já estou cansado de tanto andar.
Disse ao que ia. Zé ouviu-me com toda a atenção e respeito.
No fim lá disse:
- Caro Manel, acha que vale a pena a canseira. Não se lembra como éramos na primeira década de 2000?! Estes homens não valem nada, deram cabo da vida do nosso povo, toda a gente emigrou. Os nossos antepassados lutaram tanto para libertar este país, depois, não sei se se lembra veio a troika e tudo levou. Este Dr. Prof. Relvas é uma marioneta nas mãos desta velha alemã e da banca. Liberdade de expressão?! Já era! Eu cá não tenho medo! Além disso as minhas ovelhas também nada percebem de politica. Ouça lá, já me contou vem de longe, você é que sabe, mas e que tal ficar cá pela aldeia e amanhã vai nas calmas para sua casa?!
Fiquei mesmo frouxo da cabeça com as porradas que levei da polícia, mas o Zé avivou-me bem a memória. Ao que repliquei:
-Não! Não vou a essa manifestação de agrado ao governo. Agora, agora bem me lembro, da miséria que meus pais e avós passaram (e agora nós), bem me lembro da festa dos cravos encarnados numa madrugada de Abril, da liberdade e prosperidade prometida por valentes militares ao povo do meu País. Bem me lembro das campanhas de alfabetização, da escola para todos, do serviço nacional de saúde, de uma segurança social sustentável, da igualdade de género, da conquista do direito ao trabalho e à habitação, da liberdade de dizer. Amigo Zé se me dá guarida fico até amanhã.
- Oh homem! Vamos já aldeia acima dar a boa nova.
E pegando numa viola que estava guardada num barracão, os acordes de “Os Vampiros” de Zeca Afonso entoam pela estrada estreita, fazemos coro e lá vamos cantando: “Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”.

quinta-feira, agosto 16, 2012

Férias em nenhures! (dia 1)


Tinha um desejo escondido desde o início dos anos oitenta de percorrer a pé, só e sem destino os recantos deste nosso belo País. Passados mais de 30 anos, foi desta. A família foi de malas aviadas para o Alentejo, usufruir de um parque de campismo de 4 estrelas e meia (vem no roteiro campista e tudo) e cá o rapaz fez-se à estrada, sem mapas nem destino traçado, os objetivos são percorrer zonas que desconheço totalmente, margens de rios, tabernas e pequenos cafés das aldeias que encontre, conversar com pessoas de todas as idades, raças e credos com que me cruze, tentar conhecer a fauna e a flora do caminho.
Peguei na velhinha mochila do Tácon (alcunha do meu amigo Luís) – lembras-te Zé Agostinho?! – na vetusta tenda André Jamet e num anorak já roçado. Na mais recente Decathlon comprei umas botas de caminhar, umas meias fofinhas e um bastão, e não esqueci do anti repelente Previpic do Laboratório Medinfar, excelente!

Dia 1 – São 7 da manhã, cheguei à Rodoviária de Coimbra, vou apanhar um autocarro para o Porto, a partir daí não sei, apanharei outro autocarro para parte incerta e sairei em qualquer lugar que me pareça simpático. Não levo mapa (nem GPS), nem telemóvel, nem nada que se assemelhe a eletrónica, não fora ir calçado e mais parecia um frade Franciscano.
Cheguei ao Porto por volta das 10,40h, mas ás 11,07h, já estava sentado num autocarro que embora antigo ainda era razoavelmente confortável, o motorista e mais 5 idosos e uma moçoila de peitos grandes compunham o resto da companhia de viagem ao incerto. Comprei bilhete para o destino final (que só direi no fim das crónicas) 
Saímos da cidade, deixámos o reboliço próprio da metrópole e sem dar conta já me encontrava numa estrada sinuosa, carregada de verde em cada margem, consegui identificar pinheiros, castanheiros, mas também alguns eucaliptos. Parámos numa aldeia, entraram duas mulheres já entradas na idade, ambas traziam um cesto à cabeça que pousaram enquanto o motorista descia para acondicionar os ditos cabazes na arrumação do autocarro, sentaram-se por detrás do condutor. Uma perguntou: “ então António, a tua mulher já voltou para casa?”, o homem não respondeu, e a senhora continuou: “deixa lá, ela sempre foi assim tresmalhada mesmo quando era solteira, andava sempre de feno em feno, já se esperava. Mas tu tem calma, és um rapaz trabalhador, respeitador e até bem apessoado, com certeza que arranjarás outra que te mereça. Coitadinha é da tua filha, só com 6 anos e já praticamente sem mãe, ai, Deus me perdoe e me proteja”. 
O Sr. António, não disse uma única palavra, mas reparei na sua veia jugular a aumentar de tamanho, tal foi a força que teve que fazer para se conter.
A vegetação continua luxuriosamente verde, percebo agora no fundo do vale uma linha de água, parece-me um rio ou um ribeiro, não sei bem. Estou a gostar em particular deste trajeto, a continuar assim sairei na próxima paragem. Ora aí está, mais uma pequena aldeia e mais uma paragem, sai a rapariga das mamas grandes, desço atrás. A aldeia não é muito grande, um conjunto de casas de arquitetura rural, com pedras de granito, vêem-se espigueiros e o chão negro é empedrado. Como até aqui, a vegetação muito verde com medas de colmo a encher o espaço vazio.
Estou exausto, com fome e sede. Procuro um café, desço por uma rua estreita e avisto uma placa dos CTT, penso que será uma mercearia, apresso o passo, nem que seja para comer umas bolachas e um pouco de água. Bingo! Mercearia e café. Entro neste último, dou a salvação a quem se encontra, três homens já bem entrados na idade e mais quatro, estes entre os 25 e os 50 anos. Respondem em uníssono: “boa tarde”. Dirigi-me ao balcão, por detrás deste estava um homem de boina na cabeça, camisa desapertada e barba por desfazer. “Viva”, comecei por dizer, “cheguei agora na camioneta e estou com fome e sede, que se pode arranjar?”. 
Olhou para mim com ar de desconfiado, mas lá acabou por dizer: “posso arranjar-lhe uma sandes de presunto, ou de queijo das nossas cabras, é muito bom”.
“Uma sandes bem aviada de presunto, que o queijo é muito forte e sinto-me fraco e uma Super Bock, se faz favor”.
“Já volto”, replicou o homem.
Reparei, assim como não quero a coisa que os outros homens também olhavam para mim com estranheza e cochichavam entre si. Chegou a sandes, duas fatias bem grandes de pão caseiro, uma fatia enorme de presunto e a dita cerveja. Meu Deus, estou no paraíso. Percebi que o senhor que me atendera se chama Carlos, trabalha como madeireiro é o proprietário do estabelecimento, que é comandado pela esposa, mas que hoje fora ao médico por “causa da menopausa”, referiu o Sr. Carlos a um dos clientes.
Cheio de curiosidade, lá me perguntou: “então e o senhor de onde vem?”
“Dos lados de Coimbra”
“Vem de longe, mas não leve a mal que lhe pergunte, para onde vai com esse saco ás costas?”
Fui sincero e respondi: “olhe, não sei, por aí”.
O burburinho na sala aumentou, o homem desviou o olhar e ficou com um ar ainda mais desconfiado. Pedi um café, paguei e voltei rua abaixo. Por aquela calçada irregular, sempre a descer fui dar a um rio. Afinal, era isto que pretendia, estar só, passear junto pelas margens dos rios, olhar para casas gastas pelo tempo, observar vetustas árvores e a fauna por ali existente, embora confesse que estava com muito receio de encontrar cobras, bichos muito interessantes mas que me causam repulsa. Interessava-me reencontrar com um certo Portugal romântico e nostálgico, egoísmo puro e duro, bem sei. Andei cerca de duas horas e meia, pela margem, languidamente deixei-me levar pela beleza da paisagem e do rio que corria sem sobressaltos. Atravessei uma ponte, e após mais duas horas de caminho, e já a começar a desesperar por não encontrar onde ficar, encontrei uma aldeia. Mais pequena que a primeira, pareceu-me e com razão. Café ou mercearia não havia, passava lá uma carrinha dois dias por semana para vender os bens essenciais. Junto à capela, três homens conversavam. Abeirei-me deles e depois de os salvar, perguntei: “não sabem onde posso pernoitar? Aqui não há pensão e preciso de dormir em algum lado, assim como aconchegar a barriga.”
Um dos homens – o Sr. Alberto da Ludovina – assim era conhecido, disse: “o home, não se preocupe, se quiser fica em minha casa, tenho lá um quarto vazio que pertencia ao meu filho que emigrou para a Suíça, já se sabe é uma casa humilde, não há luxos, mas se vossemecê quiser pode lá ficar esta noite.”
Claro que agradeci, com a canseira que estava qualquer coisa era um hotel de 5 estrelas, quanto mais uma casa. Seguimos por uma rua estreita, e mais à frente estávamos a entrar na casa do sr. Alberto.
“Ludovina, hoje temos uma visita, poe mais água no caldo”, gritou ele para a mulher. Ludovina, surpreendida pela notícia, vem ver de quem se trata, ao que Alberto se apressa a dizer: “mulher, este senhor está por aqui de passagem e ofereci-lhe guarida, dorme no quarto do nosso rapaz e come o caldo com a gente”. Ludovina, mulher alta e forte, não respondeu, acenando afirmativamente com a cabeça.
Sentei-me à mesa, o caldo estava muito bom assim como o naco de pão com queijo de cabra curado e o tinto avinagrado. Pedi licença para me levantar, lavei-me e deitei-me. Estava mais morto que vivo e aquele quarto parecia o éden.  

quarta-feira, março 21, 2012

Sou Silêncio e Vento.

O vento sopra devagarinho

Como quem o tempo mata

Uma carta, um carinho

Neste tempo que passa

Um casal a namorar

No meio da escuridão

Um pássaro a cantar

Ao ritmo do coração

Um velho a assobiar

Uma velha música de jazz

Uma mulher a dançar

Há sempre um mar revolto

Que trás mágoas para terra

O rio correndo solto

Preparando-se para a guerra

Sinto-me triste, desanimado

Semeio uma palavra aqui

Outra ali, acolá

Silêncio, sou Silêncio

Neste abraço forte

Sinto o coração do Mundo

E o Mundo, o Mundo

Não me sente!

Silêncio, sou Silêncio

E vento.

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Uma Estrela que Brilha e Sorri - 2

Este texto (agora revisto e actualizado) foi publicado em Fevereiro de 2007, aquando da passagem dos 20 anos da partida do José Afonso. Cinco anos passados, como o engenho e falta de tempo me atraiçoam, mas não querendo deixar passar esta data em claro, volto a este texto, para mais uma vez e sempre recordar José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos - ZECA AFONSO.


Quando observo o céu, há uma estrela que brilha mais que todas as outras. Ás vezes parece sorrir-me, num movimento lento e gracioso como que a querer abraçar-me. Pisco-lhe o olho, partilho com ela o meu estado de alma. Nos momentos mais incertos da vida como que lhe sussurro cá de baixo, ela responde com mais brilho e fico muito mais calmo e tranquilo.
Sei que nessa estrela moram: o meu irmão Luís Miguel, os meus queridos Avós, a minha boa sogra D. Silvina, o meu primo e amigo João Brito, os meus amigos Luís Falcão, Licínio Buco e João Carlos e a minha colega Margarida, que num tempo partiram para longe, para muito longe e agora vivem naquela estrela. Na mesma morada vive um músico, um grande músico, mas fundamentalmente um homem de excepção, um cidadão vertical, utópico quanto baste para tanto encanto e segurança dar aquela estrela, chama-se: JOSÉ AFONSO – ZECA AFONSO.

Hoje escrevo para ti e ao escrever para ti, redijo para quem contigo mora na estrela que me ouve e sorri. Tive a felicidade de te ouvir e ver em algumas ocasiões, de te tocar (num singelo cumprimento no ex-teatro Avenida em Coimbra – todo eu tremia, bem me lembro), és uma grande referência de vida, um exemplo que procuro lembrar em cada dia que passa, um rebelde solidário como alguém já te chamou.
Sabes, hoje que perfazem 25 anos sobre a tua partida, todos falam de ti, os que sempre falam e os outros, mas é bom que falem de ti, da tua vida, da tua luta, da tua constante preocupação com os outros, do dinheiro que não tinhas, da doença que te obrigou a partir. Dizia o Álvaro de Campos num seu poema, que depois da morte só se lembram de nós no dia em que faríamos anos de vida e nos dias em que fazemos anos que morremos, pois que assim seja; eu por mim, continuarei a falar Contigo e com os teus Companheiros de estrela sempre que a alma mo peça, dia após… dia.

Por aqui, neste “Mar Largo”, mora a “Incerteza” e a “Menina de Olhos Tristes” “Aquela Moça de Aldeia”, já foge, foge “No Comboio Descendente” dos novos “Vampiros” da democracia que ajudaste a fundar. O nosso Portugal chora lágrimas de sangue, a miséria instalou-se, como sabemos são "Contos Velhinhos" e com esta "Incerteza" faz-nos falta a tua “Utopia”, eles não sabem que "O Sol Anda lá no Céu", mas nós sabemos que a utopia faz parte da vida e quando chegar um “Maio Maduro Maio”, abriremos a voz, num "Mar Largo", "Solitário" como um “Cantar Alentejano” e em “Grândola, Vila Morena” e em toda a parte “O Que Faz Falta” é o “Pão que Sobra à Riqueza” ser equitativamente distribuído.
Hoje, na nossa terra vivemos no "Lago do Breu" e “Com as Minhas Tamanquinhas” procurarei ali, acolá e em “Terras de Trás-os-Montes” o "Senhor Poeta" nos dirá “Como se faz um Canalha” porque a fome já chega aos “Índios da Meia-Praia” e ao "Menino do Bairro Negro", hoje um "Coro de Caídos" dizem-nos que são outros os “Fantoches de Kissinger”, mas eles andam por aí, em "Altos Castelos" disfarçados, com nomes vários espalhando o terror económico por terras da Grécia, Portugal, Espanha e "A Morte saiu à Rua" no Iraque, Palestina, Afeganistão. Precisamos de “O Homem da Gaita” para que toque a “Chula da Póvoa” e que “Venham Mais Cinco” para cantar o “Hino à Liberdade”.

O Mondego recorda-te numa sossegada Balada, eu sinto uma “Dor na Planíce” das minhas emoções sempre que tentam dar uma “Canção de Embalar” no “Natal dos Simples”. “O País vai de Carrinho” e no meio da “Canção do Medo” não sabia se havia de me revoltar ou esperar pela “Canção da Paciência” entre “Verdade e Mentira”.
És o ”Menino D’oiro”, o “Senhor Poeta”, foste “Solitário” mas sempre Solidário.
Sei que tens “Saudades de Coimbra” essa do “Choupal até à Lapa”, também temos saudades da tua presença, mas tu estás entre nós e vives naquela Estrela que brilha tanto para mim!

AMO-VOS HABITANTES DA ESTRELA QUE BRILHA E SORRI!!!